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Bem-Vindos!


Bem-Vindos ao Blog Ideias & Prosa!

domingo, 12 de fevereiro de 2012

A FONTE

A FONTE


Domingos de Gouveia Rodrigues





Ernani bateu o chapéu no paletó e nas calças para tirar o pó da estrada, colocou a maleta no chão, fechou o colarinho, arrumou a gravata e inspirou fundo. Mais um dia de trabalho. Abriu o pequeno portão de madeira esperando um rangido. Nada aconteceu, mas um cachorro enorme apareceu de baixo da casa latindo.

-      Cala boca cachorro "dos inferno"!
Voz de mulher. Perfeito. Limpou a garganta e passou a mão pelos cabelos.
-      Bom dia, minha senhora. Mas este não é realmente um lindo dia? Como é que a senhora e a sua família vão passando?
-      Bem, brigado, me diga, o senhor que veio pegar o "óme"?
-      Desculpe. Não entendi.
-      É o senhor que veio "prá pegar o óme"?
-      Pegar "óme"?
-      É. É o senhor que veio?
-      Desculpe, mas não sei do que a senhora está falando.

Sem tirar os olhos do desconhecido ela virou a cabeça meio de lado e gritou em direção aos fundos da casa:

-      Anselmo! Ó Anselmo, vem cá.

Veio o Anselmo. Tocou a aba do chapéu de palha e, meio nervoso, quase agitado disse:

-      ... dia ...o senhor que veio "buscá" o cara?
-      Foi o que a sua mulher me perguntou também, mas eu ...
-      Não é minha mulher, é minha irmã.
-      Independente disto, eu estava dizendo para ela que ...
-      Mas é o senhor que veio pegar o cara?
-      É o que estou tentando explicar.
-      Mas não é o senhor?
-      Meu bom amigo, eu ...
-      Então, é?
-      Não.
A mulher perdeu imediatamente o interesse em Ernani, virando as costas e entrando na casa. Anselmo acocorou-se e começou a amaciar uma palha de milho com a lâmina do canivete. Ia fazer um cigarro.

-      O senhor poderia, por favor, me informar onde posso encontrar ...
-      O senhor encontra de tudo na venda. É logo depois da segunda curva na estrada, "práqueles lado".

Cachorro latindo, portão sem rangido e estrada. Uma curva, duas, e a venda apareceu. Umas vinte pessoas estavam ali, fumando, andando de um grupo para outro, conversando baixinho. Ernani estranhou. Aproximou-se tirando novamente o chapéu.

-      Bom dia ... dia ... como vai ...

E foi abrindo passagem pelo povo com cumprimentos. Subiu os três degraus da escada de madeira entrando na venda e deixando para trás os olhares incômodos e curiosos. Silêncio. Dentro e fora da venda.

-      Bom dia a todos. Não está mesmo um lindo dia?

A venda era um misto de açougue, padaria, loja de ferragens e boteco. O dono aproximou-se do balcão e, esfregando as mãos no avental sujo, com um cigarro todo babado pendendo do que parecia ser o maior bigode que Ernani já tinha visto, disse:

- É o senhor que veio buscar o "óme"?
-      Não senhor, estou procurando Vila Flor do Monte. Pode informar-me como chegar lá?

Todos na venda se entreolharam num misto de curiosidade e interesse. O dono da venda então lhe disse:

-      Se você não veio buscar o "óme" então você é ....
-      Sou o professor de matemática contratado para dar o curso de fim-de-semana em Vila Flor do Monte.

Todos se aproximaram de Ernani e fizeram-lhe grande recepção gritando vivas ao professor. Um homem muito velho chegou perto de Ernani, olhou-o de cima a baixo e perguntou-lhe:
- Mas o senhor veio a pé até aqui?
-      Não senhor, o meu carro enguiçou a alguns quilômetros daqui e eu já andei uns cinco quilômetros por esta estrada de terra. É por isso que estou todo empoeirado.

O velho então respondeu-lhe:

-  Siga em frente, "Vila Frô" é a primeira cidade. Fica a uns dois ou três quilômetros daqui.
-      Muito obrigado a todos. Até logo!

Enquanto caminhava em direção ao vilarejo, Ernani pensava sobre aquela situação e achava que havia tomado uma decisão, no mínimo, insólita: atender a um pedido para ministrar um curso de matemática de fim-de-semana num pequeno vilarejo no interior profundo de Minas Gerais. Logo ele, tão arraigado em Belo Horizonte, de onde nunca havia saído. Pelo menos haveria uma boa recompensa financeira. De todo modo, lá estava ele após dar a última aula da semana, a pé, mapa rodoviário na mão, procurando a pequena e desconhecida Vila Flor do Monte. Não fosse o pequeno mapa que as pessoas que o contrataram lhe haviam dado e provavelmente jamais chegaria a seu destino. Ainda bem que trouxera o velho chapéu que pertencera a seu avô e que o protegera do sol durante a caminhada, além de lhe dar um desejável ar mais rural.

Havia ainda uma segunda recompensa, além da financeira: a região, montanhosa, era de uma beleza estonteante, repleta de pequenos vales e riachos, muito verde, uma paisagem bucólica sem fim, contrastando com a cidade grande de onde viera, cosmopolita e barulhenta.

Passados alguns poucos quilômetros, relaxa ao ver uma pequena placa de madeira, onde se lia em letras opacas, desgastadas pelo tempo, "Vila Flor do Monte". Ao lado da placa, avista uma pequena fonte cuja água caía sobre uma grande pedra, negra e arredondada, dando-lhe esperança de beber água fresca e pura da montanha, após tantas horas passadas entre poeira, sol, montanhas e vales.

Ao parar ao lado da fonte, porém, observa que havia um pequeno aviso escrito em tinta vermelha forte: "Água mineral vulcânica, imprópria para o consumo. Cuidado, não beba!". Que decepção! Sua boca volta a ficar seca e sedenta e segue em frente, em direção ao vilarejo.

Finalmente, chega a "Vila Flor do Monte". Sua primeira impressão é boa. Um vilarejo bem cuidado, com uma pequena praça cheia de flores e bancos, entremeada com algumas árvores floridas. A partir da praça estendiam-se várias pequenas ruas, todas com casas muito bem conservadas, bem pintadas e mostrando uma serenidade e um equilíbrio surpreendentes. No alto de um pequeno monte, avista um prédio, todo branco, cercado de flores e árvores, onde se lê "Escola Vila Flor do Monte" e pensa o quão agradável será lecionar naquele magnífico local nesse fim-de-semana. No monte, ao lado, belas vacas malhadas em preto e branco balançavam sua cauda à sombra, enquanto comiam um capim muito verde, numa cena digna dos Alpes Suíços.

Ao olhar ao redor, vê um pequeno grupo de pessoas em frente a um prédio em estilo colonial, um pouco maior do que as casas da vila, onde se lê: "Prefeitura". As pessoas, muito sorridentes e de ar amigável, acenam para ele, chamando-o para lá. Ao chegar, percebe que estão à sua espera, tendo à frente um senhor aparentando uma idade avançada guardando, contudo, ainda um aspecto muito jovial, que lhe diz:

-      Bom dia, Ernani. Eu sou o Prefeito da vila. Seja bem-vindo a "Vila Flor do Monte". Sinta-se aqui como se estivesse em sua casa, ao que Ernani responde:
-      Bom dia a todos, e obrigado pelas palavras. Espero que a minha estadia aqui seja boa para mim e para todos vocês, contando com a aprovação geral, manifestada num balançar de cabeça afirmativo e muitos sorrisos.

O Prefeito, então, apresenta-o a algumas pessoas:

-      Este é o senhor Antonio, o dentista da Vila. Ele está se aposentando este mês. Aquela é a senhora Lurdes, professora de português. E assim sucessivamente. Em seguida o encaminha para a pequena pousada que fica ao lado do prédio da prefeitura, local pequeno mas bastante aprazível, onde se hospedará durante sua permanência no vilarejo, indicando-lhe também  a escola onde será ministrado o curso a ser lecionado por Ernani, por sinal já vista por ele.

         Ernani conta ao prefeito o problema ocorrido com seu carro e este diz que ele pode deixar por sua conta que antes de seu retorno o carro será consertado. Pede então a Ernani as chaves do carro e este o atende prontamente, perguntando, porém, ao prefeito:

-      Estranhamente, todas as pessoas que eu encontrei na estrada aqui perto de Vila Flor do Monte perguntaram se eu vinha pegar o "óme". Que "óme" é esse?

O prefeito, bastante surpreso com a pergunta, responde a Ernani:

-      Acredito que eles se referiam a um louco que anda rondando a vila. Ele é muito perigoso e já atacou algumas pessoas daqui, especialmente as mulheres.

Ernani despede-se das pessoas, deixa sua mala no quarto da pousada e sai para conhecer melhor o local. Corre o vilarejo de ponta a ponta e todos se mostram muito amáveis e simpáticos, ainda que tenha a nítida sensação de que seus passos sejam seguidos e vigiados por olhos invisíveis e atentos.

A população do vilarejo é surpreendente para Ernani. Os velhos são extremamente saudáveis e cordiais e o tamanho da população parece indicar que existe um certo controle da natalidade, na medida em que o número de crianças é relativamente pequeno. A vila mostra um bom padrão de vida e as pessoas parecem viver da agricultura e do artesanato, além de produtos alimentícios de produção doméstica, que são comercializados entre si e também vendidos para cidades vizinhas, no dizer de alguns pequenos comerciantes.

De acordo com o que lhe disseram, o vilarejo tem um centro médico, em geral vazio porque a população é incrivelmente saudável, e uma clínica de dentista, além de uma escola de primeiro e segundo graus e uma pequena pousada, onde ele é, no momento, o único hóspede.

É sexta-feira e a noite cai sobre Vila Flor do Monte. Ernani recolhe-se ao seu quarto para descansar um pouco. Naquele princípio de noite, Ernani sente um pouco de fome e muita sede após tanto caminhar. Vai à janela e vê uma lua cheia, prateada e maravilhosamente brilhante, derramar uma forte luz sobre o vilarejo. Encantado, resolve sair para fazer uma leve refeição e dar uma caminhada. Olha no relógio e vê que eram sete horas da noite. Ao chegar à rua observa, ao longe, um grande grupo de pessoas caminhando, em silêncio, em direção à estrada de terra por onde havia chegado. Curioso, resolve seguir o grupo, sem se fazer notar e caminhando, ora pela estrada, ora por dentre as árvores e capim que a ladeiam. Ao se aproximar um pouco mais do grupo, surpreso mais uma vez, percebe que à frente seguia uma pequena carroça puxada por um cavalo branco e forte e que em cima da carroça, havia vários garrafões e vasilhames, provavelmente utilizados para carregar água. Além disso, algumas das pessoas que ali estavam não lhe eram estranhas, dado que já as havia visto na venda da estrada.

Sua surpresa é ainda maior quando vê as pessoas chegarem à fonte que advertia as pessoas para não beberem água e começarem a encher os garrafões e vasilhames. Ao aproximar-se ainda mais do grupo, inadvertidamente, pisa sobre um graveto seco que, ao quebrar-se, provoca um estalido anunciando a sua presença. As pessoas, então, são tomadas de grande surpresa ao vê-lo ali, verificando-se um grande e duradouro silêncio que é quebrado pelo Prefeito:

-      Como vai, Ernani? que surpresa vê-lo aqui!

Ao que Ernani responde:

-      Na verdade, a surpresa é maior para mim, dado que imaginava que essa água era imprópria para o consumo. Agora vejo vocês enchendo esses vasilhames com ela!

O prefeito, com um ar de quem é apanhado em flagrante, não se fez de rogado, olhando para as outras pessoas do grupo e, imperceptivelmente para Ernani, piscando o olho para elas:

-      Sabe o que é Ernani, esta água é de ótima qualidade e nós não queremos que pessoas de outras localidades venham aqui buscá-la para eles também. Por isso, colocamos essa placa. Mas, ela é boa para o consumo, disse o prefeito, bebendo uma caneca cheia de uma só vez, como se fosse o melhor néctar do mundo.

Em seguida, enche novamente a caneca e a entrega a uma moça lindíssima da vila que a oferece a Ernani. Este, meio desconfiado, recusa a oferta, ainda que estivesse visivelmente impressionado com a beleza da moça. Após pensar um pouco, o Prefeito então propõe-lhe:

-      Ernani, como os acontecimentos saíram de modo diferente do que havíamos planejado, vamos fazer-lhe uma proposta: você tem duas alternativas a escolher, ir embora agora, sem conhecer o segredo por trás desta fonte e de nossa vila, ou ficar para dar o curso e conhecer o segredo. No segundo caso, você tem de beber uma caneca dessa água. Nisso todos bebem água, como que querendo esmorecer o temor de Ernani.

Ernani ficou completamente atormentado com a proposta. Que segredo seria esse e o que lhe aconteceria se ele bebesse daquela água? Depois de muito pensar, Ernani aceitou a segunda alternativa, até porque sua curiosidade era, agora, demasiado grande para resistir e nenhum mal parecia acontecer às pessoas que bebiam da água daquela fonte. Ao terminar de beber a água, num misto de apreensão e ansiedade, oferecida novamente pela mesma moça, o Prefeito começa a lhe contar a história muito esperada por ele:

-      De uns anos para cá, notamos que, de tempos em tempos, algumas pessoas de fora da vila apresentavam um comportamento muito estranho ao beber da água que caía desta pedra. Elas continuavam a trabalhar normalmente, mas não reconheciam a sua própria família. Na verdade, esqueciam todas as suas referências pessoais, preservando o conhecimento cultural e intelectual, fenômeno para o qual ainda não temos qualquer explicação. Curiosamente, com algumas raras exceções, os habitantes desta vila não sentiam qualquer sintoma anormal, apesar de haver um consenso de que nós passamos a envelhecer muito mais devagar do que seria normal. Ao mesmo tempo, por alguma razão, a taxa de natalidade entre nós caiu drasticamente. Curiosos, resolvemos levar uma amostra desta água para análise e o resultado mostrou que ela deve passar por dentro de um vulcão inativo, apresentando quantidade de minerais muitas vezes acima do normal. Uma possível explicação para o fato de não sermos tão afetados, é que os habitantes desta vila vêm bebendo esta água há gerações e os efeitos já foram diluídos ao longo do tempo. Com o passar dos anos, a mão-de-obra foi escasseando na região, prejudicando o funcionamento da vila. Foi quando tivemos a ideia de passar a "contratar" alguns profissionais da forma que você já deve imaginar, mantendo os nossos hábitos. Por decisão da unanimidade dos moradores, mantemos o segredo só entre nós.

Ernani então pergunta:

-      O tal "óme" é uma das exceções a que se referiu?
-      Sim, responde o prefeito, infelizmente e inexplicavelmente, de tempos em tempos, alguns de nós parecem enlouquecer, tornando-se muito perigosos para nós. O que fazemos é contratar alguém para levá-los para bem longe daqui. Por isso as pessoas que você encontrou perguntaram-lhe se você vinha buscar o "óme".
-      Vocês levam esses tais loucos à força para fora daqui, pergunta Ernani surpreso, atônito e meio preocupado. Jamais poderia imaginar que num local tão calmo e de tão rara beleza as pessoas pudessem agir de modo tão frio e calculista.
-      Sim, não há outro jeito, responde friamente o Prefeito.
-      Mas por que eu fui o escolhido para ser professor aqui?, ao que o prefeito responde:
-      Porque procuramos pessoas jovens que vivam sozinhas, isto, é que não tenham constituído ainda família. Ao se integrarem em nossa comunidade, nós cuidamos para que isso ocorra aqui mesmo e, assim, tudo continua funcionando bem, mantendo o equilíbrio da vila.

Em pânico, Ernani então corre e foge em disparada, deixando para trás sua mala e seu carro, para ele ainda enguiçado. O prefeito diz:

-      Deixem-no ir. O efeito da água sobre ele leva algum tempo.

Após mais de uma hora de corrida pela estrada, Ernani, cansado, com sede e fome, para na venda de beira de estrada para fazer um lanche rápido, até porque tremia como vara verde e sua cabeça parecia já não funcionar muito bem. Imagens iam e vinham em sua mente, como um arquivo que se dissolvia lentamente. Ao parar, verifica que um outro homem, jovem como ele, muito forte e meio mal encarado, está sentado numa cadeira ao lado de uma pequena mesa, o que o deixa mais tranquilo, não obstante a forte sensação de que algo ou alguém não parasse de o vigiar. Ao chegar, senta-se na cadeira ao lado, diz boa noite para o estranho e pede uma garrafa de refrigerante ao prestativo dono da venda, que lhe diz ter apenas água mineral. O outro homem sorri para Ernani e este diz:

-      Como vai, tudo bem? O que você faz neste fim de mundo?

Ele responde dizendo que se chama Nélson e, dando uma sonora gargalhada, diz que ele não iria acreditar mas estava indo buscar um doido. Quando Ernani se preparava para contar o sucedido a ele, chega o dono da venda, trazendo uma garrafa de água mineral já aberta e diz a Nélson que alguém o chama ao telefone. Nélson estranha o telefonema - quem saberia que ele se encontrava exatamente ali àquela hora -, mas levanta-se e encaminha-se para dentro da venda.

Nesse meio tempo, Ernani enche o copo com água e bebe sem parar, voltando a repetir o ato. O dono da venda, com um ligeiro sorriso nos lábios, parecia sentir a mesma sede e o mesmo prazer. Nélson volta e diz:

-      Mas o senhor não tem telefone em sua venda! ao que o dono responde:
-      Desculpe, senhor, foi uma pequena brincadeira!

Nélson, bastante irritado, senta-se novamente e diz a Ernani:

-      Esse cara parece maluco! Acontece cada uma! Então Ernani, você não ia me dizer alguma coisa?

Ernani, agora, parecia distante e imóvel, nada respondendo. Nélson insiste e não obtém qualquer resposta. Nisso chega um carro. Era o carro de Ernani. Um homem salta do mesmo e se encaminha na direção de Ernani, pega-o pelo braço e coloca-o dentro do carro. Em seguida, partem em direção a Vila Flor do Monte.

Nélson, meio atônito com aquela cena inverossímel, levanta-se, paga a conta e pergunta ao dono da venda:

-      O senhor sabe onde fica Vila Flor do Monte?

O jornal "Diário de Minas", que chega à vila no final da tarde, apresentava, no dia seguinte, esta manchete de primeira página: "Incêndio Misterioso Destrói Casa de Professor".