Pensadores
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Bem-Vindos ao Blog Ideias & Prosa!

quinta-feira, 1 de março de 2012

UMA VIAGEM UM ACASO


UMA VIAGEM, UM ACASO?


Domingos de Gouveia Rodrigues





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         Sentada de baby doll na poltrona da sala, pernas cruzadas, Patrícia lê notícias e entrevistas que se seguiram ao sequestro do ônibus, no Jardim Botânico, no dia 12 de junho de 2000. Ela, também aluna de comunicação, se imaginara prisioneira do tresloucado assaltante, Sandro. Ela, também aluna de comunicação, pensa no patético da situação que Janaina, Luana e Geisa viveram. Ela, também aluna de comunicação, pensa nos limites entre a ficção e a realidade, e se diz com o poeta: "A realidade é apenas a parte mais visível da ficção”.

         O professor pediu à sua turma que escrevesse sobre a tragédia, que obrigou, na época, até o presidente da república a se pronunciar naquela tarde de pavor. Poderia ser uma crônica, uma reportagem imaginária ou, quem sabe, um conto, onde ela se metesse na pele dos personagens.

         Patrícia acabou de ler, na Internet, algumas matérias sobre o triste episódio. Ao final do café, comeu a fatia de mamão, escovou os dentes, vestiu sua jaquetinha e já está indo para um estudo em grupo na faculdade.

-      Vai de carro ou vai de ônibus? - indaga a mãe preocupada com a interminável violência urbana do Rio de Janeiro.

Opta pelo ônibus como se já estivesse escrevendo seu texto. Sobe, passa pelo cobrador, verifica se ali atrás tem algum tipo estranho. Precavendo-se, senta-se ao lado de uma senhora no meio do ônibus. Começa a examinar os passageiros. Nesse seu ônibus ninguém tem rosto de bandido. Uma mulata gorda com suas sacolas de plástico. Um rapaz, com uma pastinha de boy. Três adolescentes com seus luminosos cabelos e risos matinais. Alguns senhores com roupa e corpo de aposentados. Tudo trivial.

     Dá-se conta de que está numa ambígua viagem - no seu ônibus e no ônibus sequestrado. No presente e no passado. Na sua realidade e na ficção, que é a realidade alheia. Ela tem que escrever o trabalho. O ônibus prossegue matinal o seu roteiro onde tudo pode acontecer, inclusive, nada.

De repente, o ônibus, como se não tivesse mais ruas por optar, começa a entrar no túnel. Patrícia relaxa, encosta a cabeça na barra de ferro do banco e estica ligeiramente os pés preparando-se para atravessar o túnel. De repente, algo estranho acontece. As paredes do túnel não são paredes mas nuvens  muito brancas.

Ao fim do túnel, surge um imenso parque. Ao centro, um lago com um grande chafariz, cuja água, ao subir, forma um belo arco-íris.

Um Anjo - não o anjo do apocalipse, mas o Anjo mensageiro da consciência humana - recebe o ônibus e encaminha os passageiros para um grande gramado cercado de cerejeiras em flor. Ao centro, Sandro, o assaltante e Geisa, a vítima do ônibus 174, vestidos de branco, acenam para eles chamando-os.

O Anjo convida Patrícia para sentar-se numa cadeira de madeira, com ar austero, para julgar os principais intervenientes daquele triste episódio e dar o seu veredicto determinando a escolha de um culpado.

O Anjo apresenta-os um a um. São eles Sandro, o assaltante; Geisa, a vítima; a polícia; a sociedade e a mídia. Estas três últimas personificadas - cada uma - na figura de uma pessoa sem rosto. Sentados sobre grandes poltronas douradas, lado a lado, os intervenientes da tragédia escutam o Anjo apresentá-los como possíveis réus e discorrer sobre eles.

Começa, então, o Anjo, comportando-se como uma espécie de advogado de acusação e defesa ao mesmo tempo:

-      Este é Sandro, o assaltante. É ele uma vítima da sociedade que construímos e na qual vivemos, eminentemente egoísta, utilitária, insensível, individualista, materialista e fortemente corrompida em seus valores éticos e morais? Ou é ele um algoz terrível, incapaz de resolver seus problemas pessoais e de se resignar a viver uma vida miserável e medíocre e que descarrega nos outros - pela violência - suas frustrações e sua própria incapacidade de sobreviver? É ele culpado por sua patética agressividade, por seu escandaloso exibicionismo? É ele culpado por, no fundo, ser covarde e que, no desespero, atirou friamente em Geisa e não na polícia que o ameaçava? Enfim, é ele o culpado?

-      Esta é Geisa, a pobre vítima. Ë ela uma vítima ao acaso de um problema social ? Ou é ela um instrumento de Algo Superior que não podemos entender nem explicar para mostrar aos Homens o absurdo do tipo de sociedade que construímos? É ela culpada por ser frágil, por não ter poder de reação, por eleger mal seus representantes políticos?

-      Esta é a polícia. É ela culpada por ameaçar e não proteger, por ter mais balas que razão, por ter mais força que inteligência, por ter mais grades que compreensão, por ter mais impunidade que justiça? Será ela, em última instância, a polícia que a sociedade quer ter, sem tirar nem pôr, não sendo, portanto, culpada?

-      Esta é a sociedade. É ela culpada por ser o que é? Por ser um rosto sem face, um corpo sem alma, um fruto sem sementes, um rio sem peixes, uma justiça injusta, um coração sem amor? Por ter muitos presídios e poucas escolas? É ela culpada porque esqueceu seu veio formador, educador, redutor de diferenças? Que futuro quer para seus filhos? A ênfase deve ser na sofisticação do saber das escolas ou na sofisticação da segurança dos presídios? Na valorização do professor ou do policial? É ela culpada de seus próprios erros e fracassos? Ou será que a sociedade é composta não por deuses mas por seres humanos e, portanto, falíveis?

-      Esta é a mídia. É ela culpada por induzir a sociedade `a violência, por comercializar diariamente a tragédia humana, por ignorar os fatos positivos do dia a dia substituindo-os pelo obscuro do Homem, o crime, a corrupção, a miséria? É ela culpada por amplificar o patético, o escandaloso? Ou será que ela é apenas o espelho da sociedade, não sendo nem melhor nem pior do que ela?

Por fim diz o Anjo:

- Será que ninguém é culpado de nada? Será o Homem comandado por uma inexorabilidade Infinita e Universal a que usualmente chamamos de destino? Ou será que são todos culpados, porque a sociedade está interligada como uma teia de aranha sem princípio nem fim, em que cada fio é um ato humano? Essa teia representa, portanto, uma infinidade de atos humanos complexos, de amor e ódio, fraternidade e egoísmo, bem e mal, ignorância e sabedoria? São o Bem e o Mal as duas faces da mesma moeda?

Encerrada sua argumentação, diz o Anjo a Patrícia:

-      Agora cabe a você escolher o culpado.

Patrícia levanta-se e nota que, no belo parque ao fim do túnel, Sandro, o assaltante, Geisa, a vítima, a polícia, a sociedade e a mídia parecem entender-se bem. Quando um fala, o outro escuta. Quando um ri, todos riem. Quando um chora, todos se entristecem. Quando um sente fome, os outros lhe oferecem comida.

Quando se preparava para proferir sua sentença, o ônibus freia bruscamente na saída do túnel e a moça acorda meio assustada, percebendo que chegara na Gávea e que acabara de tirar um ligeiro cochilo. Após passar pela Rocinha e pelos prédios de São Conrado, pensa nas desigualdades sociais, nos dilemas da sociedade moderna num mundo crescentemente competitivo, desigual e impessoal. Pensa também no milagre do pensamento: como é possível, às vezes, em tão poucos minutos sonharmos uma história tão complexa e tão completa? Será que foi mesmo tudo um sonho? A moça desce do ônibus, reflete sobre o mundo e pensa: ela tem uma história para contar.

A moça olhou na direção da Barra da Tijuca e, ao longe, sobre as montanhas da Floresta da Tijuca, vê negras e espessas nuvens prenunciando um temporal. Vira-se em direção à Zona Sul e percebe que lá brilha um belo e rubro sol. Segue seu caminho com a certeza de que, sobre isso, não há nada a fazer.